quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

As nossas figuras populares



E assim os anos vão passando, levando uns e trazendo outros, porém fazendo desses tipos populares, marcos de uma época ida e vivida em nossa Carmo da Mata.

Segundo o saudoso cineasta carmense, Armando Sábato, toda vila ou arraial tem seus tipos populares. São pessoas, homens ou mulheres, na maioria das vezes proletariados, biscateiros ou mendigos, cuja conduta se destaca pela extravagância, fazendo seu dia a dia fugir do trivial em que se enquadram as outras pessoas. Geralmente, tais tipos são inofensivos, se bem que às vezes fiquem irritados quando provocados. Fazem parte da fisionomia da cidade e são sempre queridos por todos. Carmo da Mata jamais fugiu a essa regra, e as nossas figuras populares, como pode-se dizer, marcaram época na vida da cidade. Armando conseguiu se recordar de vários tipos que viviam em nossa comunidade, ele pôde enumerar os seguintes: 

Dos Santos: mulata baixota, de passos miúdos e rápidos, sempre com um terço em volta do pescoço e a blusa carregada de medalhas de santos. Respondia com sorriso às vaias e aos chamados.

Candinha Doida: sempre maltrapilha, resmungando coisas inaudíveis enquanto catava gravetos pelas ruas do arraial. Às vezes trazia à cabeça um tijolo e referia-se à bondade do Sr. Manoel, que lhe havia dado aquela rapadura. Não costumava sorrir nem falar mal, e tinha certa dureza no olhar.

Rita Anquinha: antiga escrava da qual se contavam lendas. Andava sempre curvada ao peso dos muitos anos vividos, apoiada a duas manguaras, sempre conduzindo uma trouxa à cabeça. Chamava aos homens “nhô” e as mulheres “nhá”, reflexo bem marcado trazido de seus tempos de cativeiro. Dizia chamar-se Rita Mariana e detestava o apelido “Anquinha”, que lhe fora dado em virtude de seu traseiro meio arrebitado. Sem residência própria, fez sua morada de um passinho que existia entre a casa de Fernando Diniz e a de Alfeu Sábato. E lá dormia no cimento duro e frio. Apesar das condições subumanas em que vivia, jamais se ouviu dizer que Rita Anquinha estivesse doente. Morreu, segundo contam, com mais de 100 anos de idade na Santa Casa de Oliveira.

Marçal: popular cego, revoltado com tudo e com todos. Dava notícia de tudo que se passava no arraial e era, altamente, irreverente ao “desancar”, em linguagem indecente, os políticos da época, inclusive os de nosso arraial. Tinha apetite voraz e também linguagem imprópria, com a qual respondia aos insultos da molecada, que o apelidou de “papo caroço”, talvez pelo pequeno bócio tripartido que lhe enfeitava o pescoço.   

Balbino: muito conhecido pelo seu apuro no trajar. As peças do seu vestuário eram de ínfima qualidade, porém seu traje era completo, incluindo chapéu e bengala. Era irreverente e costumava zombar dos outros por meio de um gorjeio rápido em falsete, simultaneamente seguido de um sorriso diabólico e um olhar de profundo desprezo. Era, altamente, verboso e tinha o dom de poeta glosador, isto é, formava uma rima bem feita a partir de uma palavra que lhe fosse dirigida. Muitas vezes respondia, em impecável rima, a um insulto, deixando o insultador embaraçado pelas gargalhadas dos circunstantes. Referia-se ao Criador chamando-O de “O mandão do Império”.   

Antônio Costa: um que merece destaque especial pela sua inteligência e pelas tiradas filosóficas. Era mais conhecido como Antônio Bicudo. Era dotado de inteligência natural, mas sem cultivo, pois jamais passara do segundo ano primário. Muito empenhado na leitura de autores como Victor Hugo, Lombroso, Allan Kardec, Max Doris e outros do mesmo quilate, Antônio Costa era o autêntico produto de leitura mal entendida. Mas conseguia impressionar os intelectuais com conceitos filosóficos de seu próprio entendimento, fazendo rir e refletir seriamente. Além de tudo, o Antônio Bicudo não era vagabundo nem mendigo. Era bom pedreiro e se especializara na construção de fogões e fornalhas por método aperfeiçoado por ele próprio. Fazia também peças de escultura, algumas das quais ainda se podem ver na fachada da casa do Sr. José Getúlio Pinto de Andrade e de Dona Ângela Ribeiro de Resende Andrade, na casa do Doutor José de Carvalho, na platibanda da casa que pertence ao Sr. Fernando Notini (Escola Planeta Azul) e também na torre de um túmulo que se situa à esquerda de quem entra no cemitério. Aliás, o interior dessa torre também lhe servia de pouso para pernoites, não por necessidade, mas por pura extravagância. O popular, querido e inteligente, Antônio Costa morreu de tétano, em Belo Horizonte, em outubro de 1953.
Além dessas personalidades mais antigas, Carmo da Mata ainda ostentou personagens, mais recentes, que deixaram saudades.
Todos com suas manias lembramo-nos de alguns, como o Pivaca que se manifestava como figura importante nas Semanas Santas, pois se vestia de Centurião Romano; sua figura e a vestimenta metiam medo nas crianças. Cumpadre, sempre babando, era cismado com Divinópolis e sempre dizia: “me leva prá ‘Diblinopla’”. Ducarmo que se celebrizou pelas suas risadas e o hábito de acompanhar enterros, sempre saía na frente do cortejo fúnebre, empunhando um buquê de flores.

Vicentão que, entre as várias manias, tinha o hábito de varrer ruas de madrugada. Em uma dessas, uma noite antes de uma eleição municipal, um candidato, jogando sua última cartada, colocou, com muito trabalho, panfletos nas portas das casas e nos locais de votação. Ele ia na frente e o Vicentão ia atrás, recolhendo a papelada para colocar fogo... 

Maria Chiclete era uma especialista na arte de pedir esmolas. Tinha uma maneira toda especial de fazer o pedido, mas detestava notas de pequeno valor e dizia: “verdinha não!”. Bastião da Júlia, amigo e admirador dos irmãos Carvalho (Dr. José e Dr. Lineu), sempre pedia para levá-lo em suas casas. Quando sua mãe faleceu, foi morar na antiga Vila Vicentina. Expedita às vezes ficava fora de si e, movida por ataques histéricos, saía pelas ruas xingando todo mundo, sem direcionar seu “xingatório” a uma determinada pessoa. Era admiradora do Dr. Iracy Bicalho, que, certamente, como delegado e amigo, era compassivo com ela; com seu linguajar próprio ela o chamava de “Toracy”, ou seja, Dr. Iracy.

Ainda apresentando as figuras mais recentes, temos o Antônio Rasgado. Com este apelido um tanto extravagante, Antônio era conhecido por toda a comunidade. Tão logo adquiriu condições físicas, passou a trabalhar em casas de nossa cidade, prestando serviços de capina e de limpeza em geral. Na maioria das vezes, recebia como pagamento pratos de comida, ou seja, “a marmita por conta do patrão”. Antônio Rasgado especializou-se em cortar folhas de bananeira secas para “sapecar” porcos abatidos, atividade comum dos armazéns da época. Era comum vê-lo conduzindo enormes feixes de folhas secas nas costas rumo aos terreiros de sapecagem. 
Em um episódio marcante, atiraram um fósforo acesso sobre o feixe de folhas secas que conduzia às costas. Tratando-se de material de fácil combustão, a cena tornou-se uma muito engraçada, com Antônio livrando-se do feixe em chamas e pessoas tentando socorrê-lo. Antônio era muito religioso e estava sempre na igreja e nas procissões.

Por sua imensa religiosidade foi recompensado como hóspede da antiga Vila Vicentina, hoje Vila da Melhor Idade, e tratado com todo carinho. Anos depois, Antônio faleceu, ainda residindo na Vila Vicentina.
Bastianinha, cuja mãe Maria Cândida de Jesus era apelidada de Maria Magros porque morava na localidade chamada Magros, distrito de Itapecerica. Depois que sua mãe faleceu, Bastianinha foi morar na Aguadinha, distrito de Marilândia, e lá viveu uma década até que foi trazida para Carmo da Mata para morar com a sua única irmã Francisca. 

Depois que a Francisca morreu, Bastianinha passou a viver na Vila Vicentina. Sempre pequenininha, dizia que tinha o coração do lado direito e era uma pessoa carismática pelo seu jeito de ser e agir. Para ela parecia que o tempo não havia passado, nunca soube o que era envelhecer e morreu da maneira que sempre viveu – sem conhecer problemas e na maior simplicidade.

Outra personalidade que, nos últimos anos, marcou, também, o cotidiano carmense foi o Lazinho da Forquilha, que gostava de se vestir com bermudas feitas de saco de açúcar, ou saco de siriguia, como diziam no passado. Apesar de não dominar a pronúncia correta das palavras, Lazinho era muito comunicativo e se dirigia às pessoas sempre as chamando de “parente”. Tinha o hábito de cantarolar a música “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, mania da qual o fez ficar conhecido na cidade. Lazinho ajudava em construções e obras e, às vezes, recebia uns trocados ou, em agradecimento ao serviço prestado, era agraciado com um prato de comida, que lhe era sempre bem-vindo. Morreu, supostamente, por efeito de medicamentos que tomava, devido a um tratamento, no ano de 1999.

Expedito, o Jaú, católico devoto, gostava de carregar a cruz e os andores nas procissões carmenses. Era participante da Festa de Nossa Senhora do Rosário. Figura peculiar, Jaú não aceitava o apelido dado a ele. Quando, principalmente as crianças o chamavam, ele saía correndo atrás delas com “quatro pedras na mão”. Ficava nervoso, quando as pessoas negavam algo a ele, e começava a xingá-las; no mesmo instante, era só dizer que iria chamar a polícia para Jaú sair andando em passos ligeiros. Jaú faleceu em abril de 2009, na cidade de Divinópolis, aos 67 anos.

Em nosso dia a dia tínhamos a presença, também, de Chibel, que, por vários anos, foi membro da Filarmônica Santa Cecília. O que fazia Chibel ser reconhecido em nossa comunidade era sua irreverência, principalmente quando ingeria bebida alcoólica e tinha costume de sair por aí proferindo a expressão “lepo-cepo”. Chibel também trabalhou no Armazém Ferreira & Cia, de propriedade de Zizico Notini e Levi Zeringota, engarrafando cachaça e foi, também, por muitos anos, coveiro do Cemitério Municipal.

Outra personalidade popular de nosso município é o Mudinho da Sá Glória. Figura que se destaca, principalmente, pelo modo de se travestir. Saia, camiseta, vestido e até mesmo o sutiã, fazem parte do seu vestuário, sem esquecer os acessórios essenciais: brincos e batom. Também é religioso, comparecendo a algumas celebrações eucarísticas.

E assim os anos vão passando, levando uns e trazendo outros, porém fazendo desses tipos populares, marcos de uma época ida e vivida em nossa Carmo da Mata.

Revista Memória Carmense / Arquivo do Jornal Tribuna do Carmo.

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