quinta-feira, 15 de março de 2012

RELIGIÃO

Antigas Semanas Santas em Carmo da Mata

Fotos: Arquivo Tribuna


Uma das mais gratificantes recordações dos tempos idos de Carmo da Mata é a das solenidades da Semana Santa, fato que constituía verdadeira revolução na rotina diária do lugar. Ainda na Quaresma, tínhamos, às sextas-feiras, a Via Sacra. Na semana que precedia o Domingo de Ramos era realizado o Setenário de Dores, que constava de cânticos, ladainhas, leituras e orações, tudo acompanhado pela banda do Sr. Cesário. A imagem da Mater Dolorosa se destacava no altar, cada dia com uma pequena espada atravessando-lhe o coração até se completarem sete, terminando, assim, o Setenário. As outras imagens eram cobertas com um pano roxo.

No Domingo de Ramos havia a Procissão de Depósito, na qual a imagem de Cristo conduzindo a cruz era, depois de encerrada em um cubículo de pano, levada para a Igreja do Rosário, de onde sairia na quarta-feira para a Procissão do Encontro. Porém, a revolução a que me referi já tinha seus primórdios bem antes, com pessoas encomendando calçados ao Gino e ternos ao João Batista de Sales e ao Zé Alfaiate, preparando-se, assim, para a “festa”.
Na segunda-feira, os fazendeiros e sitiantes traziam seus carros de bois lotados de colchões, roupas de cama, panelas e também de biscoitos, roscas e broas. Que gente boa! Alojavam-se em casas próprias ou alugadas para aqueles dias. Volantes eram distribuídos, anunciando os filmes que seriam exibidos durante quase toda a semana, incluindo-se a infalível “Vida de Cristo”.
Encontro
Na noite da quarta-feira havia a Procissão do Encontro. A banda executava motetes e outras músicas sacras. O povo, compenetrado, acompanhava, formando alas e conduzindo velas acesas, cujas chamas contrastavam com a escuridão mal quebrada pela baixa ciclagem da Companhia Sul Mineira de Eletricidade. As velas constituíam, assim, um espetáculo à parte. O Encontro se dava defronte à Igreja. Lá estava o púlpito, cujos restos ainda podem ser vistos hoje, ao lado da igreja. O Padre Galdino pregava o sermão. Sua voz adquiria um tom dramático e patético, bem diferente do de suas costumeiras homilias dominicais. Terminava ele o sermão com o invariável brado: “Misericórdia! Misericórdia!”.
Na quinta-feira havia Procissão de Dores, na qual a imagem da Mater Dolorosa era conduzida com a mesma ordem, respeito, devoção e as demais características da véspera. Porém, o toque máximo das solenidades acontecia na Sexta-Feira da Paixão. Era um dia completamente diferente de qualquer outro em Carmo da Mata. O lugar de revestia de algo como um luto pesado. Apesar do movimento, o ambiente era tristeza e sufocação. Não se ouviam gritos ou risadas. Nem mesmo os trens apitavam. O Jerônimo conduzia para os passinhos os quadros mostrando aspectos da Paixão de Cristo. Mediam cerca de um metro quadrado e eram uma espécie de tela ou pano reforçado por saco de aniagem. Mostravam figuras grotescas, sem um mínimo de arte e bom gosto, mas que conseguiam levar a mensagem.
A propósito dos passinhos, eles eram em número de cinco, se me lembro bem. Deles resta apenas um, carinhosamente conservado pelo Lineu de Carvalho ao lado de sua residência. O Jerônimo tinha também a missão de fazer soar a matraca nas ruas centrais durante o dia, único barulho estridente que se ouvia então. À noite havia a Procissão do Enterro, com suas características bem marcantes e indeléveis na lembrança de quantos a presenciaram. Dentre as pessoas que se destacavam nessa solenidade estavam Pio, conhecido como Pio Vaca. Porém esse apelido lhe era extremamente injurioso, e quando alguém lhe endereçava tal penduricalho onomástico, o Pio, desabrido e áspero, o passava à progenitora do remetente.
Centurião
Mas o que verdadeiramente se notabilizava na Sexta-Feira da Paixão era o seu papel de centurião romano. Vestia-se com um manto preto, calçava umas perneiras surradas e, à cabeça, levava um arremedo de capacete vermelho que terminava em uma peça recurvada com um bico de arara; ao rosto aplicava uma máscara de papelão ou couro, não me lembro bem, que lhe dava um aspecto medonho, que em nada se assemelhava aos garbosos elementos da milícia romana. À mão trazia uma lança formada por uma haste de madeira cilíndrica encimada por um losango de lata pintado de vermelho, sugerindo o sangue de alguém que tenha ousado quebrar lanças com ele.
Muito compenetrado de seu papel, o bom Pio se deslocava em vai-e-vem contínuo diante do esquife do Senhor Morto, dando uma pancada seca com o pé da lança no piso a cada meia volta. Isto dentro da igreja, logo antes da procissão. Em seguida esta tinha início com toda a sua comitiva de práticas legítimas e outras supersticiosas. O sino, em dobros de finados, plangia lugubremente, girando sobre o eixo, impulsionado pelo João Cuié. E a Procissão do Enterro prosseguia. Notavam-se as virgens, meninas vestidas de branco, tendo à cabeça um grande véu de filó. Também os anjos se destacavam pela roupagem mais vistosa e um par de asas habilmente confeccionadas.
Os penitentes desfilavam formando duas alas. Eram meninos com os bustos seminus, que se fustigavam o tempo todo com um minúsculo feixe de taqueras. Digna de nota era a Maria Madalena, representada pela linda e loura Adail, hoje cunhada do Dr. Amâncio. Trajando longo vestido branco e tendo soltos os cabelos que lhe desciam até a cintura, a jovem Adail chamava a atenção pelo seu porte magnificente. O Adão era representado pelo menino José Carlos Lobato, enteado do Sr. Nephtali. A Dudu lhe preparava a túnica com folhas de café. Ignoro ter existido essa rubiácea no Paraíso Edênico, mas era assim que o Zé Lobato se trajava para o Adão da Procissão.
Via-se também o Isaac, representado por um menino que conduzia às costas um feixinho de lenha. Um galho de árvore com uma enorme serpente de pano tendo à boca uma maçã conduzida na procissão. E o cumprimento de promessas: algumas pessoas que faziam todo o percurso com os pés descalços, outras levavam à cabeça uma pedra de um quilo. Lembro-me de um preto que acompanhou a procissão tendo o corpo enrolado por uma pesada corrente de carro de boi. Isso provocou algo hilariante no passinho que ficava nas imediações da casa que hoje pertence ao João do Abílio: havia uma enorme correição de formigas lava-pés junto ao passinho. Espevitadas pelo pisotear do povo, elas atacaram de rijo, provocando tumulto e uma situação tragicômica para o homem da corrente.
Canto
Em cada passinho, a Verônica cantava o “Atendite”, exibindo o pano estampado pela Sagrada Face, tendo a lhe fazer coro a infalível matraca do Jerônimo. A Marcha Fúnebre era executada pela banda. Logo atrás do esquife ia o nosso Pio Centurião (ou Centurião Pio, como quiserem), cuja lança e capacete sobressaiam por sobre a multidão. O esquife chegava à igreja, agora superlotada. O altar-mor estava coberto por uma enorme cortina roxa por detrás da qual estavam as virgens e os anjos assentados sobre uma arquibancada previamente armada. Em um dado momento, o véu se deslizava revelando toda aquela plêiade infantil, à vista da qual todos soltavam um irreprimível “Oh” de admiração e de deslumbramento. Seguia-se o beijo à imagem e o óbolo.
No dia seguinte, Sábado de Aleluia, o ambiente era diametralmente oposto. Às nove horas da manhã, o povo se reunia na praça da Matriz, defronte ao coreto, debaixo de um eucalipto, para festejar as aleluias. A banda executava músicas festivas, acompanhada por meninos que, fazendo soar campainhas, corriam em volta. O Sr. Durval do Nascimento (pai do Caboco) já havia preparado grande quantidade de foguetes e também a tracaria, que era um pau fincado no chão e carregado de pequenas bombas que explodiam em rapidíssima sucessão até o fim, quando uma bomba mais possante estourava com enorme barulho.
Havia nesse sábado, também, “diferenças” curtidas desde muito e que se desfaziam em entreveros feitos no intuito de “tirar as aleluias” no adversário. À noite, o Sr. Durval se evidenciava novamente com a queima do “castelo”, que era um dispositivo pirotécnico soberbamente elaborado por ele e seus filhos. Em seguida vinha a Queima do Judas, boneco feito com pólvora e bombas e que, suspenso pelo pescoço a um galho de eucalipto, se consumia em chamas e estouros. Antes, porém, era lido o “testamento do Judas” para gargalhadas gerais, pois o generoso bonecão havia deixado as ceroulas para o Quinzinho Notini, as botinas para o Levy Zeringotha, o pedaço de fumo para o Toniquinho do Lafaiete, as calças furadas para Carlinhos Sartori, o pinico para Odilon Jeunon, o guarda-chuva para o Juvêncio, os bentinhos para o Pedro Florista, a dentadura para o Luiz Sartori e assim por diante. Qualquer pessoa bem situada ou bem conhecida era infalivelmente aquinhoada.
Por fim, vinha o Domingo da Páscoa. Muito antes do sol sair a Procissão do Triunfo já desfilava com o alegre repicar dos sinos, o espoucar dos foguetes e o toque festivo da banda de música. O andor portava a imagem de Maria toda de branco. Quanto ao resto do domingo, era o de um domingo comum. Estava terminada a Semana Santa.
Na segunda-feira tudo voltava ao ritmo normal, notando-se, a mais, o retorno do pessoal da Forquilha, Batatal e outras vizinhanças aos seus lares. Ficavam ainda os comentários e a saudade daqueles dias tão diferentes...

Mudanças

Devo acrescentar que depois de 1937, Padre Dionísio Chagas, como coadjutor e, posteriormente, substituto do querido, velho e cansado Padre Galdino (aquele também virtuoso sacerdote) modificou em muito as solenidades da Semana Santa. Aboliu práticas supersticiosas e ridículas, dando às cerimônias um tom de mais seriedade e efetiva participação, sem contudo quebrar as queridas tradições. Por essa época, até mesmo o centurião foi substituído pelo José Luiz D’ Assumpção, que o representou de modo bem mais convincente. O Dr. Abílio Tomazzi D.Pardo, médico que clinicava aqui na ocasião, também prestava efetiva colaboração, auxiliando de modo muito eficiente o Padre Dionísio.
Ao terminar este retrospecto, levanto as seguintes indagações: deve a Semana Santa ser celebrada como nos velhos tempos ou atender às modificações profundas impostas pela Igreja atual? Deve a Paixão de Cristo ser cultuada apenas em nosso íntimo ou também por sinais exteriores bem marcados? Realmente, isso é matéria controversa. É bem verdade que, praticamente tudo mudou na Igreja, porém há cidades notáveis aqui mesmo em nosso Estado que ainda conservam as práticas tradicionais. Isso é realmente fé ou simples efeito de atração turística? Nada entendo do assunto, mas não vejo razão teológica ou disciplinar que se oponha à tradição, principalmente quando ela está enraizada no coração do povo...
 Armando Sábato
escritor e cineastra carmense
Texto extraído da Revista
Memória Carmense, ed.7, ano 2006

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