CRÔNICA
Um dia
ressurgiremos
Silveira Neto
Unindo memórias de infância e sentimento religioso, escritor
encontrou um meio poético para escrever sobre a celebração da Semana Santa em
Carmo da Mata
Uma lua cheia
claríssima não acabava nunca. Nem podia terminar, pois começou há dois mil anos
e não chegou ao fim. Os meus pés doíam de tanto andar na avenida, que tinha as
duas alas, os homens de um lado, as mulheres de outro, com centenas de velas e
rezas e ladainha, a banda de música tocando músicas tristes. Tão tristes que
iam morrer nas quebradas da montanha, ao longe. Depois, o longo sermão, à porta
da igreja, as três figuras, Jesus e os ladrões, e a lembrança da Paixão de
Cristo, um sermão em que o bom vigário procurava emocionar os fiéis com o
melhor de sua retórica.
A noite ia alta,
o plenilúnio claríssimo, o friozinho de abril, e o sono teimava em cerrar meus
olhos, mas mamãe me puxava pela mão, pois era preciso beijar o Senhor Morto.
Matracas soavam nas ruas, pois nos sinos eram mudos, e havia uma fila enorme
para se chegar ao esquife, pois, sem isso, não se podia voltar para casa.
Depois dessa
tristeza toda vinha o Domingo da Ressurreição. Jesus ressurgia de madrugada,
havia outra procissão, mas agora a felicidade estava estampada em toda as
fisionomias. Nosso senhor estava vingado do Centurião, dos inimigos, pois não
adiantara pregá-lo na cruz. Nosso Senhor era superior a essas contingências
todas, era dono de vida e superior à morte. Só muitos anos mais tarde vim a
saber que o centurião era apenas um soldado romano e que a terra de Nosso
Senhor era dominada pelo maior império da época.
Era mesmo uma
semana diferente, era realmente santa. Podia ter o seu aspecto social, mas o
que predominava era o sentido religioso.
Já havia, então,
o trenzinho de ferro, Maria-Fumaça, havia a rodovia de terra por onde
transitavam os Ford e os Chevrolet de lona. Também passavam por cima da
fazendinha os Douglas DC-3 rumo a São Paulo. Mas a mudança frenética viria
depois, com o tremendo êxodo rural. Não foram apenas os meus avós que partiram
do tempo, mas os moradores da aldeia que se mudaram para São Paulo, em busca do
salário mínimo e da aposentadoria.
E nunca mais
voltaram: os mais velhos foram dormir num chão distante, e os jovens construíram
novas famílias lá pelos lados de Campinas. Aqueles colegas de escola rural
transformaram-se em simples reminiscências vagas da memória, em figuras que
passam como espectros quando evoco essas cenas distantes em minha Semana Santa.
Não tenho outra
Semana Santa senão a que se fixou na lembrança, as longas procissões e ladainhas,
os cabelos do Padre Galdino e a emoção dos sermões do Padre Dionísio Chagas,
ambos há muito tempo do lado de lá da fronteira do tempo. Aquela é a minha
Jerusalém, como outros também devem ter as suas, porque cada um de nós tem
poder de recriar as mensagens que todos recebem a um só tempo. Nosso Senhor, na
sua onisciência absoluta, sabe compreender que, na nossa relatividade do
tempo-espaço, cada um pode entendê-lo e aceitá-lo a seu modo, desde que haja o
denominador comum da humildade e do amor.
Sempre se disse
que, sem a Ressurreição, todo o drama da Paixão deixaria de ter sentido. Tudo
seria uma ilusão e uma utopia. Pois a verdade, sem dúvida, é que um dia
ressurgiremos todos. Verei de novo aquele pequeno defunto que foi enterrado no
adro do cruzeiro. Ressurgirão os velhos da minha infância e os sinos da matriz
hão de tocar novamente na minha Semana Santa. Ressurgirão os meus ancestrais,
que acordarão de suas moradas silenciosas para presenciar a maravilha das luzes
que brilharão no grande dia do mundo que não acabará nunca. Procissões e
procissões desfilarão pelas longas avenidas, não mais do Tempo, mas do Eterno,
entoando cantos de triunfo, do senhor que venceu os centuriões do pecado. Não
haverá mais sofrimento, mas sorrisos, pois a Carne, livre das limitações, da
dimensão e da dor, se confundirá com o Espírito, na mesma realidade do ser
redimido.
A Ressurreição
virá para todos. Não se pode admitir uma fraude de Deus.
Fonte: Revista Memória Carmense nº 11
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