sexta-feira, 19 de março de 2021

Padre Luís Alarcon: O Milagreiro dos Campos.




—►Na década de 60, a Comunidade dos Campos, na zona rural de Carmo da Mata, tornou-se palco de um fenômeno religioso de repercussão nacional. Sem precedentes na história da Região, esse fenômeno teve como protagonista o Padre Boliviano Luís Alarcón, que apareceu no município e passou a realizar o que alguns consideraram curas milagrosas.
Venerado por uns, que o viam como o Milagreiro dos Campos, combatido por outros, que o julgavam um impostor, Alarcón, ligado à Igreja Católica Brasileira, uma dissidência da Igreja Católica Apostólica Romana, chegou a atrair dezenas de milhares de pessoas vindas de várias partes do país. Apesar da fama, em 1967, nove meses depois de chegar à Região, ele acabou denunciado e preso por órgãos de segurança pública. E desapareceu da região tão rápido quanto surgiu.
Anos depois, a  Revista Memória Carmense teve acesso a documentos do Processo Judicial, entrevistou pessoas que conheceram Alarcón e foi até ao local em que ele habitou na Região. O resultado da pesquisa, que incluiu a busca de informações em arquivos da imprensa e de órgãos oficiais de documentação, é tão enigmático quanto a conturbada passagem do sacerdote pela Região.
Afinal, quem foi Alarcón? Um sacerdote que agia movido por um dom de cura concedido por Deus, ou um homem que se utilizava da fé para tirar vantagens da necessidade de cura dos fiéis? Eis a questão, ainda não respondida de modo conclusivo. 

Quem visita hoje a Comunidade dos Campos, situada entre Carmo da Mata, São Francisco de Paula e Oliveira, não percebe sinais da intensa movimentação que tomou conta do lugar em meados dos anos 60, quando ele se tornou o centro de atividades do padre boliviano Luís Mário de Vilarroel Alarcón. Por causa do sacerdote, que chegou ao Povoado com a fama de ser o intermediário de milagres feitos por Nossa Senhora Aparecida, o pequeno Povoado transformou-se, rapidamente, num centro de romarias. A presença de visitantes, vindos de diferentes partes do país em busca de cura para seus males ou apenas por curiosidade, foi tão grande que atraiu a atenção de grandes órgãos da imprensa como a extinta revista “O Cruzeiro”, que tinha, na década de 60, o mesmo papel hoje desempenhado por publicações como ‘Veja’ e ‘Istoé’. Em novembro de 1966, Fernando Richard e Leopoldo José de Oliveira, repórteres da Revista, foram à cidade, acompanhados pelo fotógrafo Nelson Santos, com o objetivo de produzir uma reportagem que saiu em seis páginas, ilustradas com fotografias feitas nos Campos. 
Toda essa ebulição começou em maio de 1966, quando Alarcón passou a morar nos Campos. O sacerdote demorou pouco tempo para conquistar um grupo de amigos fiéis em Carmo da Mata, São Francisco de Paula e Oliveira. É possível, no entanto, que nem mesmo os colaboradores mais próximos de Alarcón na Região tenham tido conhecimento detalhado de sua trajetória anterior. “Ele contava que veio da Bolívia fugindo da guerra, porque o governo queria que os padres também fossem lutar”, lembrava o lavrador Joaquim Francisco da Silva, o Joaquim Rita, que na época tinha 85 anos, que morava nos Monteiros, próximo aos Campos, ele emprestou uma casa para que Alarcón pudesse morar durante o tempo em que permaneceu na Região. A pequena e modesta residência, situada fora do aglomerado de moradias da região, é ocupada hoje por uma sobrinha do lavrador e sua família. 
Se o motivo da imigração de Alarcón foi fugir de alguma guerra, é algo obscuro ainda hoje, assim como são obscuros vários episódios de sua vida. O pouco que se sabe do sacerdote é baseado em informações extraídas da imprensa e dos processos judiciais movidos contra ele. Notícia publicada pelo jornal Estado de Minas em 17 de fevereiro de 1967 informa que o sacerdote nasceu em Cochabamba, na Bolívia. Aos repórteres que o entrevistaram para O Cruzeiro, Alarcón disse que havia sido ordenado em Barcelona, na Espanha, em 1948. O sacerdote também relatou aos repórteres que havia sido enviado ao Brasil na década de 50 para realizar trabalho missionário, chegando a ser professor de uma faculdade de filosofia no Mato Grosso.
Por volta de 1956, ainda segundo o relato, Alarcón se desligou da Igreja Católica Apostólica Romana e se juntou à Igreja Católica Apostólica Brasileira, que tem, aliás, uma história tão polêmica quanto a do sacerdote boliviano. Dissidência da Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Brasileira foi fundada em 1945 pelo bispo carioca Dom Carlos Duarte Costa. Seu fundador — que já havia sido bispo das Dioceses de Botucatu e de Maura, esta última na Mauritânia, na África — foi expulso da Igreja Romana após fazer por vários anos uma pregação que incluía a condenação do celibato clerical e do apoio dado pela Igreja de Roma a partidos de direita, que ele considerava simpatizantes do fascismo. Antes disso, Dom Duarte Costa, falecido em 1967 e transformado em “São Carlos do Brasil” pela Igreja Brasileira, havia feito forte campanha contra a ditadura de Getúlio Vargas. Há indícios de que alguns dos elementos da personalidade de Dom Duarte Costa tenham influenciado Alarcón, que nunca chegou, contudo, a adotar uma postura política tão incisiva. 

►Pastoreando

Segundo a revista O Cruzeiro, Alarcón chegou aos Campos por intermédio do fazendeiro Orozimbo Ribeiro, que o convidou para morar em suas terras e dar assistência religiosa à população. Essa relação de confiança entre o sacerdote e o fazendeiro sugerida pela reportagem diverge do relato do lavrador Joaquim Rita, que menciona o fato de Alarcón ter se desentendido com Orozimbo. O motivo da desavença teria sido a gleba em que o sacerdote realizava seu trabalho espiritual. Na versão de Joaquim, Orozimbo vendeu o terreno a Alarcón, mas não lhe permitiu transcrever a escritura. Além disso, o fazendeiro teria tentado criar obstáculos para que colaboradores do padre pudessem construir uma estrada que levasse os fiéis até a parte mais alta do terreno, onde estava uma pequena casa de madeira na qual ele pregava. Segundo Joaquim, Alarcón fez um pronunciamento na ocasião. “O padre falou: ‘Fulano [Orozimbo] vai morrer, mas não vai ser como vocês. Ele vai sumir. A Nossa Mãe não gostou dele e Deus também não vai gostar”, diz. A versão de Orozimbo para o caso não chegou a ser conhecida. O fazendeiro desapareceu misteriosamente alguns anos depois, na década de 70, enquanto caminhava por ruas de Carmo da Mata. Uma história corrente na cidade diz que ele foi convidado a entrar num carro azul no início de uma noite e nunca mais foi visto. Jamais foram descobertas indicações sobre o paradeiro ou o corpo de Orozimbo.

►Milagres x encenações

A equipe de O Cruzeiro, reconstituiu com base em testemunhos de moradores, algumas das curas milagrosas atribuídas a Alarcón, as quais parecem não ter sido checadas pelos repórteres. O primeiro dos relatos refere-se a uma mulher de Divinópolis que seria cega e teria voltado a ver após receber a bênção de Alarcón. Também foram encontradas histórias sobre um cigano que teria ficado curado de dores, uma menina que teria se levantado da cadeira de rodas após vários anos de paralisia e um cego que teria voltado à sua terra, em Goiás, completamente curado. A única declaração literal de Alarcón reproduzida pela reportagem refere-se à sua explicação para as curas: “Teologicamente poderiam ser chamadas de milagres, mas, à luz da Ciência, são denominados fenômenos da Metafísica”, declarou. Em Carmo da Mata, há depoimentos que coincidem em vários pontos com o relato colhidos pela revista O Cruzeiro.

►Prisão

A prisão de Alarcón foi efetuada pelos agentes federais Alfredo Gomes e Paulo Trindade. Para chegar até o sacerdote, ambos simularam estar doentes e ficaram nas imediações da casa que ele ocupava nos Campos, aguardando uma oportunidade de solicitar-lhe uma bênção de cura. No momento em que Alarcón decidiu conceder-lhes uma entrevista, foi preso rapidamente. A ação, monitorada de Belo Horizonte, foi desencadeada de madrugada com o objetivo de impedir que fiéis interferissem. Mesmo assim, vários seguidores do padre boliviano, ao tomarem conhecimento de que ele estava sendo preso, mobilizaram-se para tentar libertá-lo. Os agentes federais presenciaram então uma demonstração impressionante de fidelidade. “Tudo foi realizado rapidamente para que os fanáticos não tentassem interferir na prisão, mas mesmo assim um grupo de pessoas acompanhou a viatura que transportou a viatura até Belo Horizonte”, diz a reportagem publicada no Estado de Minas no dia 17 de fevereiro. 
Alarcón ficou preso em Belo Horizonte durante todo o dia 17, à disposição dos órgãos de segurança pública. Na porta do órgão, as manifestações continuavam. “Os fanáticos queriam de toda forma convencer o major Vicente Gomes da Mata a colocar em liberdade o padre ‘milagroso’”, escreveu o Estado de Minas na mesma edição de 17 de fevereiro, com um tom que demonstra franca antipatia a Alarcón. Às 19 horas, temendo que os fiéis tentassem algum tumulto para libertar o sacerdote, o major determinou que o sacerdote fosse levado a Brasília, onde ele foi ouvido pelo Departamento Federal de Segurança Pública em Brasília a respeito de suas atividades em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Para justificar a prisão, o major Vicente Gomes, repetindo o que o delegado Fábio Alvim Machado havia dito em seu relatório, divulgou em Belo Horizonte a notícia de que Alarcón havia sido condenado pelo crime de corrupção de menores. Não consta, no entanto, que ele tenha cumprido essa pena. Na ocasião da prisão, o Departamento Federal de Segurança Pública também anunciou que o Ministério da Justiça havia decidido expulsar Alarcón do território nacional. A nota do jornal Estado de Minas, já na edição de 18 de fevereiro, foi de novo sensacionalista: “Em conseqüência da condenação do padre da Igreja Católica Brasileira, será ele extraditado do Brasil nos próximos dias”. 
Embora anunciada pela imprensa, a expulsão de Alarcón não chegou a ocorrer. Algum tempo depois da prisão, ele foi solto e retomou sua vida religiosa. As poucas informações disponíveis indicam que Alarcón se fixou numa paróquia da Igreja Brasileira no bairro Santa Mônica, em Belo Horizonte, onde ficou até o fim da vida. Na paróquia, chamada de Vila Jerusalém, Alarcón deixou a barba crescer e chegou a bispo da Igreja Brasileira. Foi como “Dom Alarcón” que ele autografou, em 15 de novembro de 1975, uma fotografia dada ao lavrador Joaquim Rita, que chegou a visitá-lo por mais de uma vez em Belo Horizonte. Mas os tempos eram outros. Desde a saída de Alarcón dos Campos, não houve notícia de polêmicas religiosas envolvendo seu nome. Há cerca de 5 anos, longe dos holofotes da imprensa e do alarde dos tempos em que arrebatava multidões na região, o “Milagreiro dos Campos” foi prestar contas a Deus. 

►Matéria originalmente extraída da Revista Memória Carmense Edição 09 do ano de 2007, pertencente ao Jornal Tribuna do Carmo.

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